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Ao pó tornarás

Por: Claudecir Bianco
Teólogo e Missionário
Setembro/2021


[…] porque tu és pó e ao pó tornarás. Livro do Gênesis, capítulo 3, versículo 19[1]

Minha intenção nestas linhas, não é descrever como cada cultura age e reage frente ao fato comum a todos os seres viventes na face da Terra, mas refletir um pouco sobre esse assunto para o qual convido você a se juntar nesta reflexão. Minha esperança é que você possa desenvolver outros pensamentos sobre este assunto. Isso não fará de você um ser inabalável quando enfrentar essa situação no seu círculo de amizades, familiares ou não, mas apenas, poderá te ajudar a ressignificar o fato, ajudando-o(a) no seu tempo de luto.

Há tempos este assunto tem encontrado espaço em meus pensamentos. Escrever sobre ele é desafiador, mas a intenção é apenas desvelar a você minha forma de pensar. Morte é tabu na vida das pessoas, independente de classe social, faixa etária, econômica e cultural.

Tudo o que tem vida, um dia vai morrer. Falar sobre a morte não é comum em casa, nas escolas, nas igrejas e muito menos na sociedade, de forma geral. Assim, à medida que vamos aumentando em idade, nos calamos e seguimos um fluxo, para chorar (ou refletir) apenas no final. Ao longo da vida, vamos somando sofrimentos e refletindo internamente sobre a partida final, de forma muito íntima e sem qualquer intenção em expressar nossa opinião ou ouvir a respeito. Consolidamos em nós mesmos o tabu. Outros, adeptos de misticismos, creem que podem atrair (neste caso a própria morte) se falar sobre ela.

Deus, em sua infinita sabedoria e misericórdia, desde muito cedo alertou ao homem sobre a morte. No versículo 17 do segundo capítulo do livro de Gêneses o Senhor instrui Adão:

[…] não comerás da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no dia em que dela comeres, com toda a certeza morrerás!” [2]

Sabedores que somos da narrativa bíblica e que esta morte não é somente a morte física, o homem desobedece ao Senhor e, este então, o sentencia:

“E disse ao Homem: “Por ter dado ouvidos à Mulher e comido da árvore De que o proibi de comer: ‘Não coma dessa árvore’, Até mesmo a terra será amaldiçoada por sua causa. Tirar o alimento da terra Será tão sofrido quanto o parto da Mulher; você sofrerá para trabalhar durante toda a sua vida. A terra produzirá espinhos e mato, e, para você, será penoso conseguir alimento; Você vai plantar, regar e colher, vai suar na lavoura, de manhã cedo até bem tarde, Até que você volte para a terra, morto e enterrado; você começou como pó e como pó também acabará.” Primeiro livro da Bíblia, capítulo 3, versículos 17 ao 19.[3]

Nestes anos que as pessoas ao redor do mundo estão sobrevivendo frente à pandemia do COVID-19, me deixou ainda mais reflexivo ao fato da morte. Ao mesmo tempo que temos a plena certeza de que ‘voltaremos ao pó’, quando o momento da partida de algum ente querido chega, destrói nossas estruturas, deixando-nos nocauteados. Tudo acontece muito rápido, alguns usam a expressão: ‘de uma hora para outra’, a bíblia fala que nosso tempo é breve porquanto a vida passa muito depressa, e nós voamos!” Salmos 90.10.

Atualmente, as mortes por COVID-19 no mundo, somam mais de 4 milhões, sendo este os casos ‘registrados’, dobrando esta quantidade podemos chegar num número próximo dos efeitos deste ínfimo vírus.

Assim como você, também perdi vários amigos decorrente de complicações deste vírus mortal. Não pude me despedir deles, assim como a maioria de seus familiares. As mortes, principalmente aquelas que acontecem nos leitos hospitalares, dificultaram ainda mais o processo de ‘despedida final’ do ente querido. A partida é solitária e muito rápida, num fechar de olhos!

Poucas são as oportunidades para uma despedida dessa natureza, mas, será que queremos nos despedir? Não somos um pouco (ou muito) negacionistas sobre este assunto?

 

SOBRE O TEMOR DA MORTE

Há muitos anos comprei um livro em um sebo em Curitiba, intitulado “Sobre a Morte e o Morrer” da escritora e médica Elisabeth Kübler-Ross[4]. Neste livro, a autora, narra as experiências de seus pacientes que comunicaram suas agonias, expectativas e frustrações ao enfrentarem esse momento tão difícil. Reflexões solitárias de uma despedida ‘forçada’!

Elisabeth, descreve esses momentos como estágios conscientes que são: Negação e Isolamento, Raiva, Barganha, Depressão, Aceitação. Entendo que refletir sobre cada um deles, sem estar clinicamente debilitado, pode nos ajudar a suportar uma situação inusitada no futuro. Acompanhe, brevemente algumas argumentações destacadas pela autora em cada um dos estágios:

Negação e Isolamento “Não, eu não, não pode ser verdade.”

Raiva “Não é verdade, isso não pode acontecer comigo!”

Barganha“Se Deus decidiu levar-me deste mundo e não atendeu a meus apelos cheios de ira, talvez seja mais condescendente se eu apelar com calma.”

Depressão – Neste estágio não há uma frase específica declarada pela autora, mas há várias narrativas de sofrimentos quando o paciente se depara com a dúvida se continua, ou não, com os tratamentos (extremantes caros). Pensa em como a família suportaria tal golpe em suas finanças já fragilizadas e jamais planejadas para tal situação.

Aceitação – Segundo a autora, se um paciente conseguiu passar por todos estes estágios com suportes físicos e emocionais, ao chegar aqui, demonstra um senso de ‘o que adianta lutar contra esta situação?’

Em minha opinião, os cristãos maduros, devem resistir à tentação de incorporar os quatro primeiros estágios, isso poderá trazer mais conforto para este momento, pois confiamos na sabedoria e soberania de Deus.

Refletir sobre o conteúdo deste livro nos mostra um pouco da realidade que não vemos, para nós que ficamos do lado de fora dos quartos hospitalares, há outros temores, mas penso que as fases são as mesmas.

A autora, traz citações nas entradas de cada capítulo, esta, particularmente, achei muito interessante:

Já posso partir! Que meus irmãos se despeçam de mim!

Saudações a todos vocês, começo minha partida.

Devolvo aqui as chaves da porta e abro mãos dos meus direitos na casa.

Palavras de bondade é o que peço a vocês, por último.

Estivemos juntos tanto tempo, mas recebi mais do que pude dar.

Eis que o dia clareou e a lâmpada que iluminava o meu canto escuro se apagou.

A ordem chegou e estou pronto para minha viagem.

Tagore – Gitanjali, XCIII

 

POR QUE CHORAMOS A PERDA DO OUTRO?

Cada pessoa tem suas particularidades e cada uma irá se expressar de forma distinta frente à perda daquele que parte. Compreendo que não é a quantidade de lágrimas que irá medir, na verdade isso é irrelevante. Mas é relevante refletir por que estamos mais propensos a chorar numa situação como esta.

A somatória destes sentimentos e a maturidade como refletimos sobre a morte, deve nos ajudar a ajustar algumas atitudes em nossas vidas. Por exemplo, choramos pela ausência do outro ou por nossos medos? Choramos pela falta que o outro fará ou por aquilo que deixaremos de receber dele? Choramos pela perda do outro ou a somatória das nossas próprias frustrações?

Muitos choram não pelo outro, mas por eles mesmos. Choram por terem sido arrogantes, por não ter tido respeito, choram porque nunca obedeceram, choram porque perdeu seu mantenedor financeiro, choram por suas próprias negligências.

Mantenho sobre minha mesa e reflito constantemente (além da bíblia), o livro: ‘Quem vai chorar quando você morrer?’ de Robin Sharma[5].

O autor relata que, quando era ainda um adolescente, seu pai lhe disse uma coisa de que jamais esqueceu: “Filho, ao nascer, você chorou enquanto o mundo se alegrava. Viva sua vida de tal modo que, ao morrer, o mundo chore enquanto você se alegra”.

No primeiro capítulo, onde escreve sobre ‘descobrir sua missão’  (na vida) Sharma afirma:

Vivemos numa época em que as pessoas já não se lembram mais de qual é o propósito da vida. Podemos facilmente mandar alguém para a lua, mas temos dificuldade de atravessar a rua para conhecer um novo vizinho. Podemos lançar um míssil mundo afora, que atingirá o alvo com pontaria certeira, mas não encontramos tempo para levar nossos filhos à biblioteca. E-mails, redes sociais, smartphones conectam-nos com o mundo; no entanto, vivemos numa época em que os seres humanos nunca estiveram tão separados uns dos outros. Perdemos de vista nosso propósito. Perdemos de vista as coisas que são realmente importantes.[5]

Encontramos nestas linhas alguns motivos do pranto, principalmente onde está destacado. As distrações do mundo nos estão afastando, cada vez mais, das coisas que deveriam ser mais importantes para nós. Quando perdemos, sentimos a dor represada por anos. Todos os sentimentos de palavras e gestos de carinho que não foram realizados.

O abraço apertado que deixei da dar, o beijo carinhoso na face quente, que não dei, se tornará o último beijo numa pele fria e morta, que não reage mais. Os serviços de qualidade que poderia ter oferecido deixando mais tempo para aquela pessoa usar da forma como ela mesma gostaria, usurpei por preferir ser servido.

Tudo passou, tudo acabou!

Então, eu pergunto:

Você ainda acha que realmente foi ‘de uma hora para outra?’

Você acredita que a morte só aconteceu no momento em que aquela pessoa deixou de respirar?

Talvez essa seja apenas mais uma inverdade que você consolidou para si próprio, tentando aliviar a sua dor.

Por que então, não se alegrar, aproveitando todos os momentos com quem você ama e admira?

Tem que ser hoje, a declaração, o serviço, o aperto de mão, o abraço! Amanhã, poderá ser apenas lágrimas!

Aliás, ‘tem que ser hoje’, foi um artigo que escrevi em 2019, que trata da brevidade da vida e dos momentos preciosos que deixamos passar desapercebidos.

 

ESPERANÇA PARA OS QUE CREEM

Falar que a morte é inevitável é o mesmo que falar que o fogo queima ou que a água molha, mas, assim como estes elementos (água e fogo) a certeza da morte também pode trazer outros ensinamentos e práticas. O fogo se extingue, a água seca, a morte ‘transforma’, conforme afirma o apóstolo Paulo, em sua primeira carta aos Coríntios, capítulo 15, versículo 54, que diz:

No momento em que este corpo perecível se revestir de incorruptibilidade, e o que é mortal, for revestido de imortalidade, então se cumprirá a palavra que está escrita: “Devorada, pois, foi a morte pela vitória!”

Só alcança esta vitória aquele que está em Cristo, pois foi Ele quem venceu a morte. No entanto, é também o Cristo de Deus que ensinou a viver a vida de forma que agrade e honre o Pai.

Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor Jesus Cristo! Porque, de acordo com sua extraordinária misericórdia, nos regenerou para uma viva esperança, por intermédio da ressurreição de Jesus Cristo dentre os mortos. 1ª Carta de Pedro, capítulo 1, verso 3

Logo, nossa esperança está em Cristo! Mas não funciona como um ‘passaporte’ para o paraíso como pensam alguns. Os ensinamentos de Cristo são para serem vividos no dia a dia. Amor ao próximo, perdão, honestidade, humildade, são vida, é a vida em abundância, narrada no Evangelho de João, capítulo 10, versículo 10b, ‘eu vim para que tenham vida e vida em abundância!’

Saber que ao pó tornaremos, não deve causar em nós tristeza, mas regozijo!

Podemos temer as dores que o processo de morte pode causar, mas não mais temer a morte, pois a ‘morte eterna’ foi vencida, agora temos a vida eterna!

Assim, no lugar de chorar a ausência do ente querido, que possamos aprender a viver de forma mais saudável e muito mais amorosa o tempo que temos juntos.

Alegre-se com a presença para não chorar (muito) com a ausência.

Trate das frustrações da sua vida, não deixe que sentimentos reprimam sua espontaneidade.

Procure falar dos seus sentimentos com as pessoas que você ama.

Esteja pronto para agir em auxílio do seu próximo independente se ele irá fazer o mesmo por você.

É no livro de Eclesiastes, capítulo 3, versículos 1 ao 8 que encontramos um texto conhecido por muitos:

Para todas as realizações há um momento certo; existe sempre um tempo apropriado para todo o propósito debaixo do céu. 

Há o tempo de nascer e a época de morrer, tempo de plantar e o tempo de arrancar o que se plantou, 

tempo de matar e tempo de curar, tempo de derrubar e tempo de edificar, 

tempo de chorar e tempo de rir, tempo de lamentar e tempo de dançar, 

tempo de atirar pedras e tempo de guardar as pedras; tempo de abraçar e tempo de se apartar do abraço, 

tempo de buscar, e tempo de desistir, tempo de conservar e tempo de jogar fora, 

tempo de rasgar, e tempo de costurar; tempo de ficar quieto e tempo de expressar o que se sente, 

tempo de amar e tempo de odiar, tempo de lutar e tempo de estabelecer a paz. 

Nesta mesma linha de pensamento há o livro ‘As quatro estações da vida’ de Mário K. Simões. Este livro trata das fases da nossa vida, fazendo uma analogia com as quatro estações que regem cada ano.

Creio que esta reflexão seja importante para cada um de nós à medida em que nos tornamos mais maduros.

Não é uma receita para lidar com os dias de dores e sofrimentos, mas é apenas um preparo para o enfrentamento e recomposição da vida para seguir em frente até chegar a nossa hora de partir!

Podemos concluir que os autores citados e o próprio texto de provérbios nos ensinam não é somente que o tempo de fechar os olhos definidamente chegará para cada um de nós, mas que devemos entender cada uma das fases pelas quais passamos e vive-las com sabedoria, dando Glórias a Deus, pois Ele é o mantenedor da vida.

Ao passarmos por estes momentos de sofrimentos e perdas, podemos entregar ao Senhor (em oração) todas as nossas dores e aflições pois, “Ele tomou sobre si as nossas enfermidades e pessoalmente levou as nossas doenças”. Mateus 8:17b.

A palavra enfermidade, em grego é astheneia e significa: falta de forca, fraqueza, debilidade do corpo, sua fraqueza natural e fragilidade da saúde, debilidade ou enfermidade, falta de forca e capacidade requerida para entender algo, reprimir desejos corruptos, suportar aflições e preocupações.

Tudo isso devemos entrar ao criador da nossa vida!

Que o próprio Espírito de Deus, nos ajude a suportar estes momentos!

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[1] – Bíblia de Estudos da Fé Reformada – São José dos Campo, SP : Editora Fiel, 2021

[2] – Bíblia A Mensagem – APP para celular

[3] – BÍBLIAPortuguês. Bíblia de Estudos King James – BKJ 1611 – Niterói, RJ : BV Films Editora, 2018.

[4] – Elisabeth Kübler-Ross – Sobre a Morte e o Morrer – São Paulo : Editora Martins Fontes, 1998

[5] – Robin Sharma – Quem vai chorar quando você morrer? – Campinas, SP : Verus Editora, 2010

[6] – Mário Kaschel Simões – As 4 Estações da Vida – São Paulo : Editora Fôlego, 2011

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