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A igreja cada vez mais distante dos pobres

Por: Claudecir Bianco
Teólogo e Missionário
Março/2019


Pode parecer uma contradição supormos que as igrejas evangélicas estão descompromissadas com os pobres, uma vez que as denominações, em sua maioria pentecostais, estão em bairros na periferia das cidades, justo nas regiões mais pobres. Mesmo estas, em minha opinião, não atuam como poderiam e tendem a replicar as mesmas ações que as igrejas mais ‘abastadas’ em suas práticas. Por algum tempo, os evangélicos foram considerados como pertencente a um grupo de iletrados e de gente pobre. Ao que tudo indica, isso mudou… Que pena, veja o relato de Lucas:

Então eles, vendo a ousadia de Pedro e João, e informados de que eram homens sem letras e indoutos, maravilharam-se e reconheceram que eles haviam estado com Jesus. Atos 4:13

Essa mudança de ‘status’ foi conquistada pelas lideranças que nos últimos anos fizeram o possível para transformar essa realidade, no sentido de alcançar famílias mais abastadas e profissionais mais qualificados. Não há problema algum nesta ação. A meu ver, para atender esta nova demanda foi realizado alguns ajustes no foco da missão. Ao não se considerar pobre, considera-se abastada, distante dos mais pobres, logo, seus olhos não veem a miséria que lhe deu origem. Ao mudar o foco da missão, transforma-se o fundamental em superficial, o pecado em simples delitos. A ira de Deus pelo pecado é sutilmente amenizada e, domingo após domingo prega-se a figura de um Deus bondoso, omitindo que este mesmo Deus é justo.

Como essa guinada de ‘classe’ aconteceu afastando a igreja dos mais pobres?

 

Passo a descrever agora, algumas suposições, apontadas por Carlos Pinheiro de Queiroz que estão no livro Eles herdarão a Terra, que a meu ver corroboram com este distanciamento. Devemos, no entanto, considerar que este livro data de 1998, onde o cenário sócio-político-econômico no Brasil (e no mundo) eram bem diferentes.

a.Mantemos atitudes egoístas e cômodas

Trabalhar com pessoas pobres requer tempo, paciência, dedicação da vida e bens materiais; e nem todos estão dispostos a pagar o preço deste desafio. Não estamos dispostos a colocar à disposição das pessoas mais pobres nossos ‘santuários’.

b.Sacralizamos a riqueza e profanamos o pobre

A ideologia do mundo religioso ocidental funciona com a mesma regra de mercado. Na religião de mercado, bem como para os que fazem mercado da religião, riqueza é sinal de benção e ser pobre é uma desgraça.

c.Utilizamos mecanismos de seleção por exclusão

Para a manutenção da identidade protestante, muitos evangélicos têm mantido uma atitude de não fazer aquilo que os outros fazem, por melhor que seja o que eles praticam. Assim sendo, em se tratando do compromisso com os pobres, muitos evitam a prática das obras de caridade, por considerarem tarefa exclusiva dos espíritas, e não se comprometem em favor dos oprimidos por acharem ser isso tarefa exclusiva de ativistas de esquerda.

d.Dicotomizamos devoção x responsabilidade social

Espiritualidade e responsabilidade social são tão gêmeas que o critério de escolha de homens para cuidarem das questões social em Jerusalém tinha como esteio a vida espiritual do que seriam escolhidos (cf. Atos 6.3). É lamentável que se divorcie devoção e compromisso social! Espiritualidade descomprometida com o próximo não passa de tapeação religiosa:

Pois aquele que não ama seu irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê. (cf. 1ª João 4.20)

Rowland Croucher, no livro Justiça e Espiritualidade, afirma:

Aqueles que não ouvem o lamento do outro não estão ouvindo a voz de Deus e, em contrapartida, Deus não os ouve. A oração não é uma fuga da realidade. Na oração, amamos o mundo como Deus o ama, um mundo de pessoas. E só há uma forma de amar: sair de nós mesmos e ir em direção aos outros.

e.Trocamos os desafios das boas novas do Reino de Deus pela ameaçadora ‘evangelização pé-na-cova’

Chamamos de ‘evangelização pé-na-cova’ aquela que se caracteriza pelo desafio que fazemos às pessoas somente para a morte e não para a vida toda. Geralmente começa com a pergunta: ‘Você está preparado para morrer?’, no lugar de: ‘Você está disposto a assumir os compromissos do Reino de Deus durante sua vida?’.

f.Usamos uma escatologia escapista e alienante

A promessa da segunda vinda de Jesus Cristo é bíblica. Antigo e Novo Testamentos estão repletos de afirmações da maior esperança do povo de Deus. Todavia, não temos o direito de fabricar, com esta esperança, distorções não propostas pela Palavra de Deus. Entre estas distorções estão:

a.Muitos cristãos têm assumido uma atitude de fuga e escapismo diante dos problemas do mundo. São pessoas que, pressionadas pelas dificuldades, desejam a vinda de Jesus, não por amor ao Senhor (como vimos), mas para livrarem suas peles do sofrimento. A fuga é uma distorção não proposta pela escatologia bíblica.

b.Outros alienam-se totalmente das responsabilidades familiares, profissionais e sociais. Carregam também consigo uma espécie de regozijo com os sofrimentos e miséria dos outros, como se tudo o que acontece de ruim fossem sinais do fim, que vão de mal a pior, não havendo nada mais a fazer pelas pessoas.

John Sttot sugere uma atitude conciliadora quanto à nossa prática de vida e à esperança escatológica:

Devemos esperar, mas não temos a liberdade de fazê-lo na inércia. Assim, ‘trabalhar’ e ‘aguardar’ caminham juntos. A necessidade de esperar que Cristo venha do céu nos libertar da presunção de que podemos fazer tudo; a necessidade de trabalhar por Cristo na terra nos livra do pessimismo que pensa que nada podemos fazer. Somente uma mente cristã que tenha desenvolvido uma perspectiva bíblica pode capacitar-nos a manter este equilíbrio.

g.Temos uma visão distorcida da Criação, da Queda e da Redenção

A queda corrompeu o homem todo e todos os homens. A natureza também foi afetada e até agora geme, aguardando a redenção dos filhos de Deus (cf. Rm 8.22-23). A desobediência da humanidade, ao continuar seus projetos alheios aos propósitos de Deus, corrompeu a própria natureza humana, mas não a destruiu completamente. A redenção é o processo construtivo iniciado por Cristo, testemunhando e propagado pela Igreja, como cooperadora com Deus na restauração de todas as coisas.

h.Reduzimos a proclamação comunitária a um apela individualista

A evangelização intimista, egoísta, visando simplesmente uma pessoa que se enclausura, voltada para si mesma, não é bíblica.

Ser-me-eis testemunhas tanto em Jerusalém, como em toda a Judéia, Samaria e até os confins da terra. (cf. Atos 1.8)

A evangelização de comunidades, nações, cidades, requer conversão do indivíduo, mas também dos esquemas, estruturas sócio-políticas culturais onde as novas criaturas, coletivamente, canalizam suas experiências e atitudes.

i.Fomos afetados pelo rompimento com o movimento norte americano do ‘evangelho social’ no final do Século XIX

Este foi um movimento promovido por teólogos liberais, dentre os quais destaca-se o teólogo Walter Rauschenbush. Houve por parte da igreja uma reação à proposta do movimento, em virtude do radicalismo e unilateralismo dele. Os teólogos envolvidos com a causa do evangelho social acreditavam que através de seus programas sociais poderiam construir o Reino de Deus aqui na terra. […] Até então, era tão natural a prática evangelística e social da Igreja, que nunca se fizera necessário defender doutrinariamente este assunto, nem estabelecer uma dicotomia entre evangelização e responsabilidade social. O evangelho já trazia harmoniosamente todas as marcas do Reino de Deus.

j.No Brasil, fomos afetados pela Revolução de 1964

O golpe de 1964 alterou de maneira frontal a maneira como a igreja evangélica brasileira lidava com a responsabilidade social, especialmente no que se refere à ação política.

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Creio que estes pontos ajudaram a compor este cenário de afastamento da igreja dos mais pobres, além de outros. Nos mais de 20 anos atuando na área social, percebi que muitas igrejas consideravam minha fala como político partidária, alinhada com a esquerda, que até então estava no poder.

Ao escrever estas linhas e refletindo nas igrejas e comunidades que já visitei, observo que a argumentação de caracterizar como político partidário, foi muito superficial e ignorante. Desconsiderar a atuação da igreja em ações sociais para o alcance dos mais pobres é negar o cumprimento da missão dada por Cristo.

A tentativa de focar numa classe mais abastada social e financeira, para depois, alcançar os mais pobres, pode ser uma estratégia que, se não vier acompanhada de oração, dedicação e foco, poderá manter a situação da igreja como mais rica, porém distante da missão que foi dada por Jesus. Continuar a utilizar os recursos materiais exclusivamente para sua própria manutenção e benefícios afastará cada vez a igreja, deixando cada vez mais distante daquele que outrora fora seu objetivo primário.

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BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudos de Genebra – São Paulo: Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

QUEIROZ, Carlos Pinheiro. Eles Herdarão a Terra – Curitiba: Encontro, 1988.

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1 Comentário

  1. A. M. de Alcantara

    Quase todas as igrejas ditas evangélicas pentecostais em realidade não estão nas periferias em razão de compromisso com os pobres. Dá pesar afirmar isto, mas elas ali estão porque é mais fácil obter a adesão financeira, que não necessariamente pode vir com a conversão. Já ouvimos a expressão: “eu aderi a essa religião porque isto ou aquilo…” É no meio protestante, diferentemente do evangélico (difiro um do outro), que o termo “conversão” é a resposta mais acertada, dada por alguém nele se arrolou. No protestantismo o convertido é “membro”. No meio evangélico, é “associado”.
    A constatação final é a de que na periferia se proliferam as igrejas evangélicas pentecostais, raramente (ou em nada) acompanhadas das obras de resgate social, que as deveriam identificar como “igrejas para os pobres”.

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