Menu fechado

A Prática Social do Cristianismo Primitivo

Por: Claudecir Bianco
Teólogo e Missionário
Outubro/2019


A religião pura e imaculada para com Deus e Pai, é esta: Visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações, e guardar-se da corrupção do mundo. Tiago 1:27

Acredito que há alguma curiosidade, por parte de alguns cristãos, em saber como a Igreja primitiva exerceu sua prática logo após a ascensão de Jesus. Como trabalhavam em grupos, como se organizavam, quais eram suas prioridades? As indagações são muitas e estas análises devem ser realizadas com tempo e dedicação para buscar textos históricos confiáveis. Recentemente ganhei uma série de livros e um deles intitulado Vozes do Cristianismo Primitivo, me chamou a atenção. Foi um prazer enorme poder folhar este livro, primeiramente pelo índice e depois, mais especificamente, o capítulo sétimo, que trata do tema deste artigo.

Os outros capítulos falam do Ensino Cristão na Igreja Primitiva, Estilos de Cultos, A Ceia do Senhor, O Batismo, A Luta por Unidade, A História Kainótica, A Legitimidade do Credo Niceno, Espiritualidade e Pobreza. É, sem dúvida, uma obra fantástica que deve ser explorada e refletida, buscando traçar paralelos e percebendo os detalhes, nos quais nos afastamos consideravelmente da proposta inicial.

O autor, Dr. Edward Glenn Hinson, é historiador e professor de história da igreja no Southern Baptist Seminary, Lexington, Kentucky. Nasceu em St. Louis, Missouri, formado pela Universidade de Washington em St. Louis (BA), Seminário Teológico Batista do Sul (BD, Th.D.) e Universidade de Oxford (D.Phil.). Passou sua vida no ensino do seminário. Em 1992, depois de ensinar história da igreja no The Southern Baptist Theological Seminary em Louisville, Kentucky, por trinta anos, ele ajudou na fundação de um seminário em Richmond, Virgínia, até sua aposentadoria em 1999. Atualmente, o Dr. Hinson, continua a frequentar e ensinar na Igreja Batista de Crescent Hill e como professor Sênior de História e Espiritualidade da Igreja no Seminário Batista de Kentucky. Glenn é o autor e editor de 26 livros e mais de mil artigos e resenhas de livros.

Segundo o autor, o cristianismo tem acumulado um saldo muito maior em ministérios sociais do que em ação social. Esta não tem sido negligenciada, é claro, mas sua natureza controversa tem esfriado o entusiasmo das igrejas quanto a sua realização. Quão efetivas as igrejas podem ser em ação social depende em grande parte do tamanho de suas membresias. Grupos minoritários tendem a concentrar-se em serviços sociais dirigidos a seus próprios membros, enquanto grupos majoritários passam a assumir responsabilidade pelo todo do corpo político, portanto obscurecendo as linhas divisórias entre serviço e ação social.

O envolvimento cristão em ministérios sociais e ação social no período pré-reforma pode ser dividido mais ou menos em três fases. Antes da conversão de Constantino, por volta de 312, as igrejas, representando uma pequena parcela da população em muitas áreas, fizeram muito pouco que merecesse o título de ação social, mas fizeram muito em termos de ministérios sociais. De 312 até a queda do Ocidente, em 476, e mesmo depois disso no Oriente, as igrejas, com a bênção imperial, assumiram um papel dominante tanto em ação social como em ministérios sociais; algumas vezes causando confronto entre o clero e o funcionalismo imperial. Durante a Idade Média no Ocidente, as igrejas dominaram a sociedade a tal ponto que a ação social frequentemente tomou a forma de protesto contra a igreja hierárquica, e ministérios sociais foram desenvolvidos não somente pela Igreja Católica, mas também por uma variedade de grupos dentro e fora dela.

Nos primeiros três séculos os cristãos surpreenderam seus contemporâneos com seus ministérios sociais, tanto em extensão quanto em qualidade. Apesar dos romanos serem conhecidos por sua liberdade, normalmente agiam na expectativa de algum tipo de compensação, se não materialmente, pelo menos em amizade. Os cristãos, baseados no amor agapê, agiram quase que despreocupadamente em seu desejo de suprir as necessidades humanas onde quer que elas estivessem e em qualquer que fosse a sua forma, mesmo se o que fizessem, manchasse algumas vezes a sua reputação. De seu parentesco judaico, os cristãos, herdaram uma grande preocupação para com as viúvas, os órfãos e outras pessoas necessitadas, adicionando a este, vários outros ministérios.

CUIDADO PARA COM AS VIÚVAS E OS ÓRFÃOS

As igrejas consideraram como a primeira obrigação de seus líderes o dever de cuidar daqueles que não tinham ninguém mais para tomar-lhes conta. “A religião pura e imaculada…”, de acordo com Tiago 1:27, consiste no serviço às viúvas e órfãos. Policarpo, o venerável bispo de Esmirna, chamou as viúvas de ‘altar de Deus’. Hipólito, por volta de 217, aplicou o cuidado para com as viúvas como um teste para os candidatos ao batismo. Por volta do final do primeiro século, as igrejas já tinham estabelecido um rol de viúvas formalmente reconhecidas como necessitadas. Apesar de algumas delas trabalharem em troca de sustento, muitas outras recebiam comida, abrigo, roupas e outros suprimentos sem que trabalhassem por isso. Alguns problemas apareceram com o inchamento dos róis, mas tais dificuldades não detiveram as igrejas em seu cuidado pelas viúvas.

Numa cultura onde infanticídio e abandono de crianças eram práticas comuns, as igrejas se engajaram na tarefa de cuidar das crianças indesejadas e órfãs. As famílias cristãs, viúvas, ou casas caridosas resgatavam milhares do exército de abandonados. Tertuliano, o irascível teólogo cartaginês, apontou com certo orgulho para o uso da oferta de amor mensal visando o cuidado de ‘meninos e meninas que não possuem nem pais nem propriedade’. Pressões sociais cristãs podem ter levado à legislação de Constantino, proibindo a remoção de crianças sob o cuidado de famílias que adotam crianças indesejadas, deixadas ao léu, abandonadas para morrer.

CUIDADO DOS DOENTES, MISERÁVEIS E DEBILITADOS

O cristianismo ajudou uma grande variedade de pessoas necessitadas. Seguindo o exemplo de Jesus, as igrejas estabeleceram uma estrutura de socorro no diaconato, consistindo tanto de mulheres como de homens. Nesse ponto, aquilo que distinguiu especialmente a caridade cristã foi sua extensão aos empobrecidos e negligenciados. Nada atraiu maior censura entre os primeiros escritores cristãos do que negligenciar os pobres. Falta de caridade para com os pobres foi catalogada como ‘o caminho da morte’, pelo autor do Didaque, um manual da igreja cristã primitiva. Inácio de Antioquia condenou os heréticos da Ásia Menor por não mostrarem cuidado para com os necessitados. Da mesma maneira, textos primitivos regularmente invocavam o evangelho em apoio à uma preocupação liberal para com os outros. O dever da pessoa rica era suprir aquilo que os pobres necessitavam; o dever da pessoa pobre era louvar à Deus e orar pelo rico.

CUIDADO DOS ENCARCERADOS E CATIVOS

Encarcerados e cativos, a maioria cristãos, apresentaram um outro desafio à consciência social cristã. Os cristãos manifestaram preocupação mesmo para com criminosos, mas sua maior ajuda foi para os cristãos encarcerados por causa da sua fé. O cuidado dos encarcerados ‘por causa do nome’ era o cuidado do próprio Cristo. Ainda que algumas vezes eles tenham se retirado desse ministério, nobres exemplos de cuidado sacrificial são numerosos. Inácio recebeu ajuda generosa de cristãos na Ásia Menor em sua árdua viagem à Roma para ser martirizado. Justino classificou a visitação de prisioneiros entre as funções regulares dos diáconos de seu tempo. A história de Luciano sobre o cuidado cristão para com o charlatão Peregrino ilustra o quão longe algumas foram em seu zelo. Perpétua, a rica mártir cartaginesa, descreveu como um soldado romano de bom coração permitiu que ‘muitos irmãos’ vissem e confortassem prisioneiros.

Eles também procuraram, desde o início, providenciar o resgate dos cativos. Clemente de Roma alegou que muitos cristãos voluntariamente ‘se colocaram em cadeias para assim libertar outros’. Hermas, ele próprio um ex-escravo, classificou a redenção dos ‘escravos de Deus’ de suas aflições entre os mais importantes deveres cristãos. As invasões dos bárbaros, do terceiro século em diante, estimularam os cristãos a fazerem tudo o que podiam para aliviar o sofrimento físico e espiritual dos cativos.

SEPULTAMENTO DE INDIGENTES E OUTROS MORTOS       

Apesar dos cristãos compartilharem da consideração que os romanos em geral tinham pelos mortos, eles causaram um grande impacto com o sepultamento dos pobres, os quais tinham que providenciar para si mesmos através da formação de collegia para sepultamento. As provisões legais para collegia proporcionaram ao cristianismo uma cobertura sob a qual congregações, que de outra forma seriam proibidas, pudessem existir sem serem constantemente escrutinizadas. Hipólito proibiu taxas exorbitantes para sepultamento em cemitérios, ‘pois eles pertenciam aos pobres’. A família do falecido pagava somente pelo coveiro e pelo custo dos tijolos usados para lacrar o túmulo nas catacumbas. De acordo com Tertuliano, o sepultamento dos pobres era debitado de um fundo comum. Gradualmente as igrejas passaram a providenciar o sepultamento de todos os seus membros.

ESCRAVOS 

O cristianismo primitivo, como uma religião minoritária, não procurou fazer nenhuma campanha visando a eliminação da escravidão e, portanto, por razões compreensíveis, exortou os escravos a estarem contentes com sua situação. Dentro da comunhão cristão, entretanto, as divisões de classe deixaram de ter sentido. Escravos, como os outros membros do Corpo de Cristo, eram reconhecidos como irmãos e irmãs e gozavam totalmente do direito de serem indicados para o clero, apesar do fato que o concílio de Elvira, na Espanha, em 306, proibiu a ordenação de um escravo que permaneceu em cativeiro por causa do controle do seu dono. Entre os ex-escravos que se tornaram bispos de Roma temos Pio, o décimo bispo (139-154) e Calixto (217-222). Muitos escravos se distinguiram pelo martírio.

PROVIDENCIANDO EMPREGO E INSISTINDO SOBRE TRABALHO

O cristianismo primitivo considerou o trabalho em alta estima e condenou a preguiça. Porém, quando as igrejas ganhavam convertidos, cujas ocupações eram questionáveis, ele frequentemente eram delas retirados porque as igrejas se recusavam a admitir pessoas em ocupações como gladiadores, atores, prostitutas, pedintes etc, e portanto, tinham que ajuda-los a achar outros empregos; as próprias igrejas e membros ricos providenciavam-no. Quando não era possível encontrar emprego as igrejas sustentavam os indigentes a partir de um fundo comum. Cipriano convidou o bispo de Tena, Eucrácio, a enviar um ex-ator à Cartago caso sua igreja não pudesse providenciar a ajuda que ele necessitava.

CUIDADO EM TEMPOS DE CALAMIDADE

O cristianismo primitivo distinguiu-se pelo ministério a pessoas acometidas por desastres de um tipo ou outro. Cipriano solicitou aos cristãos cartagineses que cuidassem não somente dos seus seguidores, mas de todas as pessoas afetadas pela peste. Numa carta escrita, por volta de 263, Dionísio de Alexandria orgulhou-se do cuidado corajoso demonstrado pelos cristãos alexandrinos para com as vítimas da praga. Enquanto os pagãos fugiam, deixando os mortos sem sepultura, os cristãos arriscavam suas próprias vidas cuidando dos doentes e sepultando os mortos. Cipriano atribuiu a coragem dos cristãos à sua crença no após vida.

Assim, conclui o autor, desde o seu início o cristianismo tem demonstrado uma capacidade especial para a criação de condições que podem suprir as necessidades humanas de uma maneira imparcial. Um exemplo é a criação do agapê, uma refeição comunitária com propósitos caritativos. Conectada originalmente à ceia do Senhor ou eucaristia, no segundo século, tal refeição passou a ser celebrada separadamente em lares, reuniões públicas das igrejas, sepultamentos, ou comemorações anuais da morte dos santos ou mártires. Tertuliano contrastou vigorosamente as refeições dos cristãos com as dos pagãos. Em vez de esbanjarem dinheiro com banquetes, festas e refeições públicas dissolutas, os cristãos reservavam seus bens para ajudar os necessitados. Uma outra criação orientada para o serviço social foi o diaconato. O bispo presidia sobre a administração geral da igreja tendo os presbíteros como conselheiros e ajudadores, enquanto os diáconos, sob a orientação daquele, distribuíam as caridades da igreja. Colaborando com o ofício diaconal estavam os subdiáconos, viúvas e diaconizas.

Entendo que o momento que vivemos é totalmente outro e que existem, por parte do Estado, muitas políticas públicas que buscam amenizar as necessidades destes grupos citados no texto. No entanto, a reflexão gira em torno das práticas cristãs atuais estarem distantes da proposta de ação social, necessária  para o mundo de hoje. Ao vivermos na atualidade, com tantas necessidades sendo sanadas pelas políticas públicas, não seria ótimo se nos empenhássemos para sermos mais efetivos como Igreja?

Um dos textos que Calvino utilizava com frequência em seus escritos e ensinos é o apelo de Isaías 58.7, ao homem rico de Israel:

“… e não te escondas do teu semelhante”

…que ele interpreta como uma referência ao “teu pobre.”

Em outro sermão, ele pondera:

“Deus mistura os ricos e os pobres para que eles possam encontrar-se e ter comunhão uns com os outros, de modo que os pobres recebam e os ricos repartam.”

Infelizmente, a Igreja criou outras prioridades para se manter ocupada, investindo seus recursos em obras cada vez mais suntuosas com salários e benefícios dignos de executivos de alto escalão. Infelizmente, perdeu-se o foco, pois vai afastando-se cada vez mais das verdades bíblicas. Deixou o complexo tomar o lugar da simplicidade, perdeu-se!

____________________________________

Baixar em PDF :  

BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudos King James – BKJ 1611 – Niterói, RJ : BV Films Editora, 2018.

HINSON, E. Glenn. SIEPIERSKI Paulo. Vozes do Cristianismo Primitivo – São Paulo, SP : Editora Sepal, 1990. Pg. 93 – 97.

Post relacionado