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O Shalom de Deus e o cristianismo líquido

Por: Claudecir Bianco
Teólogo e Missionário
Outubro/2019


Porque sabemos que toda a criação geme e está juntamente com dores de parto até agora. Romanos 8:22

No artigo intitulado O Shalom de Deus e conceito moderno de progresso fiz esclarecimentos sobre a conceituação e significado da palavra Shalom e, apresentei a definição do que é missão integral, pela ótica de Renê Padilha. Na sequência do artigo, citei algumas porções do livro: ‘Galactolatria – mau deleite’ da Dra. Sônia T. Felipe, trazendo a realidade nefasta da indústria sobre o rebanho bovino e a usurpação do leite. Por fim, apresentei três possibilidades de mudanças na perspectiva de John M. Perkins que são: o deslocamento, a reconciliação e a redistribuição, como sugestões práticas para a missão integral mais eficiente, por parte da igreja e seus fiéis.

Neste artigo, quero refletir sobre as conceituações já postas como o Shalom de Deus e a missão integral, colocando o foco agora numa análise crítica sobre o cristianismo expressado nas últimas décadas, conceituando-o como ‘cristianismo líquido’. No entanto, quero ainda aproveitar e enfatizar as três possibilidades de mudanças, também descritas no artigo anterior.

Por ‘cristianismo líquido’ me refiro à percepção que paira na mente de muitos em querer viver o cristianismo sem fundamentos, sem solidez e que se desfaz diante da sedução das coisas passageiras deste mundo. Os padrões, valores e princípios que antes eram balizadores e norteavam a expressão de fé cristã, hoje são descartados com extrema rapidez, por pessoas que não suportam regras, mas preferem o ‘evento social’ como prática. O conceito de fluidez está presente em toda a sociedade e esta, por sua vez, influencia a igreja e sua expressão de fé. Sim, deveria ser o contrário, mas não é.

O conceito de sociedade líquida foi formulado por Zygmunt Baumann (1925-2017) sociólogo polonês que conseguiu descrever (de forma brilhante) o modus vivendi da sociedade. Segundo Baumann as experiências humanas tornaram-se ‘líquidas’, uma poderosa metáfora da vida contemporânea como sendo móvel, fluida, maleável, amorfa, difícil de conter ou predizer, ou seja, são conceitos que escorrem, vazam, são superficiais, pouco duráveis, sem profundidade, altamente volátil e incerto. Totalmente contrário às concepções passadas, consideradas como sólidas, profundas, bem delimitadas, ordenada, racional, previsível e, relativamente estável.

Diante da proposta de Baumann, podemos identificar razões pelas quais o cristianismo pode ser considerado ‘líquido’. Ao observar como a maioria das pessoas vivem o cristianismo, podemos traçar paralelos, entre a sociedade e grupos cristãos, chegando facilmente na definição de um ‘cristianismo líquido’. Muitos tem trocado o que era fundamental, sólido e concreto na expressão de fé e relativizado, se apegando a novas formas e conceitos claramente caracterizados como momentâneos e sem qualquer profundidade. A fé foi moldada aos padrões humanos, não mais dada por Deus; ela é fomentada, criada e mantida, pelo querer humano, quando mais lhe interessa. O ‘cristianismo líquido’ criou um Cristo ‘genérico’ para se adequar a este novo estado, totalmente voltado para ser agradável e consumido, domingo após domingo, sem muito esforço, mas com altas doses emocionais.

 

I – A IMAGEM E SEMELHANÇA DE DEUS POSTA DE LADO

No princípio, criou Deus os céus e a Terra. Segundo o relato bíblico, tudo o que o Senhor criou foi bom, inclusive o ser humano, criado à Sua imagem e semelhança. Tudo o que foi criando foi entregue ao homem para que este cuidasse:

E disse Deus: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança; e domine sobre os peixes do mar, e sobre as aves dos céus, e sobre o gado, e sobre toda a terra, e sobre todo o réptil que se move sobre a terra. Gênesis 1:26

A narrativa bíblica nos mostra o Deus criador e mantenedor da vida, criando e dando suporte para manutenção de toda a sua criação, antes e depois da desobediência humana. Mostra a preocupação de Deus com a continuidade das espécies no sentido de multiplicar-se e encher e povoar a terra, colocando o homem como o cuidador de tudo o que foi criado.

No entanto, para o ‘cristianismo líquido’ esta história tornou-se apenas conto. É considerada apenas um ato simbólico, fictício e sem qualquer fundamentação. A concepção de Deus criador e mantenedor, para a sociedade líquida, não faz sentido e não preenche qualquer necessidade. Não há necessidade em imaginar tal possibilidade, pois, está mais do que ‘comprovado’ que a origem da vida se deu de outra forma. No pensamento do ‘cristianismo líquido’ Deus foi expulso do paraíso por ser muito rigoroso e exigente. Muitos cristãos enxergam a natureza criada através das lentes arrogantes do consumismo, crendo que sua principal finalidade é o de servir a raça humana, dentro do paradigma da dominação-sujeição. A partir disso, vemos uma igreja pouco preocupada com as questões ambientais ou no cuidado com a natureza e seus biomas. Assim, podemos afirmar que não é a natureza que está doente, mas o ser humano. O ser criado à imagem e semelhança, mesmo tendo sido alcançado pela graça salvadora do Criador, ainda padece na cegueira espiritual, pois quer ver o paraíso futuro e não quer se dedicar ao cuidado do jardim terreno. Julga-se muito espiritual, mas, ao relativizar conceitos concretos, peca por não cumprir com as primeiras ordens dadas, permanecendo no processo contínuo de desobediência.

 

II – O DESEJO HUMANO COMO ESSÊNCIA  

O conjunto de pessoas que vivem o ‘cristianismo líquido’ gostam de ouvir pregações alienantes da realidade dentro de uma apresentação de uma salvação no além. Se satisfazem em imaginar que seu lugar está ‘garantido’ no paraíso. Tudo para eles, está relacionado com o futuro. Deus vai libertar, vai transformar… Eles têm dificuldades para enxergar Deus agindo no presente, no dia a dia. Muitos criaram conceitos, crendo que no presente cuidam eles, no futuro, post mortem, Deus.

Ao criar uma concepção como esta, a essência humana vem à tona. Seu querer, tem mais importância e é mais necessário para este momento. A figura do Cristo genérico, da fé self-service é o GPS desta geração de indivíduos.

E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra. Gênesis 1:28

A má compreensão do “sujeitai e dominai” promove um domínio que tem se revelado, destruidor, depredador, irresponsável e arrogante num grau tremendamente assustador, quer seja o dominante, cristão ou não. Observa-se uma terrível doença! Uma doença que está enraizada no coração humano. Porém, não se trata de uma enfermidade na natureza, mas de uma doença antropológica, que tem levado o ser humano a experimentar relacionamentos interpessoais de opressão e coisificação devido ao paradigma da sujeição-dominação, totalmente desalinhado com o querer de Deus, divorciado das razões pelas quais como cuidador foi criado. O ser criado usurpou o papel do Criador. Totalmente desprovido de qualquer poder criativo, ele explora tudo e todos por uma única razão, seu desejo.

O ‘cristianismo líquido’ não se importa com a ecologia, com a manutenção do planeta e sua biodiversidade, pelo contrário, ele a explora, pois, acreditando nele mesmo, vê no futuro a possibilidade de ‘recriar’ ambientes melhorados, seja neste ou em outros planetas. O conjunto de pessoas que vivem o ‘cristianismo líquido’ não se importam muito com suas ações, suas omissões, seus devaneios. Creem somente em sua ‘capacidade’ em fazer um futuro melhor, da sua maneira, calcando-se na tecnologia e em pensamentos progressistas.   

 

III – A SALVAÇÃO DIVORCIADA DA CRIAÇÃO 

Quando observamos com detalhes a criação de Deus e Seu Shalom estabelecido, entendemos que ambos, a natureza e o homem se complementam. Podemos perceber a complementação dentro de um processo harmônico. Acreditar no dualismo homem/natureza, pode levar a uma teologia simplista, totalmente falsa ou distante do foco central que é Deus. Tanto a natureza como o homem sofreram com o pecado e, decorrente disso, necessitam de restauração. É Deus quem salva o homem e é o mesmo Deus que redime a criação, pois é Dele. Encarar a natureza como aquele ‘objeto’ que se pode conquistar pela compra e então fazer o que bem entender é considerado uma violência e afronta ao Criador.

E formou o Senhor Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente. Gênesis 2.7

[…] todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó. Eclesiastes 3.20

Para o conjunto de pessoas que vivem o ‘cristianismo líquido’ a salvação de sua alma está totalmente divorciada da salvação da criação. São assuntos distintos sem qualquer relação. Não se enxergam como cuidadores e mantenedores da criação, pensam somente em si mesmo. No ‘cristianismo líquido’ não existe clareza com relação a biodiversidade da criação, nem com a dimensão de interligação humano/natureza em termos salvíficos. Pensam numa salvação isolacionista, distinta da salvação do cosmos.

Os pertencentes ao grupo do ‘cristianismo líquido’ não percebem que a salvação está profundamente relacionada com a criação (o Shalom), e que a história de Deus com o mundo inicia-se, não a partir do pecado original, mas a partir da criação, do estabelecimento do Shalom de Deus.

 

IV – PARTINDO PARA AÇÕES PRÁTICAS   

No livro ‘O que é Missão Integral’, de Carlos René Padilha está uma citação bem oportuna para este assunto que estamos refletindo e diz respeito às questões que foram propostas acima. Ele escreve sobre John M. Perkins, um profeta negro de Mendenhall, Mississippi, Estados Unidos. John nunca se limitou ao terreno do teórico, mas se propôs a criar estratégias para que mudanças acontecessem. Assim, ele resume em três princípios:

1º – Deve haver deslocamento: Para servir de maneira efetiva aos pobres devo deslocar-me, ou seja, integrar-me à comunidade necessitada. Ao ser vizinho dos pobres, as necessidades da comunidade se tornam minhas necessidades. 

2º – Deve haver reconciliação: O evangelho tem o poder para reconciliar as pessoas com Deus, com os outros, comigo mesmo e com a criação. A reconciliação que atravessa barreiras raciais, culturais e econômicas não é um aspecto opcional do evangelho. 

3º – Deve haver redistribuição: Deus nos chama a compartilhar com aqueles que sofrem necessidades… Isso significa compartilhar nossas capacidades, nosso tempo, nossas energias e nosso evangelho de forma que capacitem as pessoas a interromper o ciclo da pobreza e a assumir sua própria responsabilidade diante de suas necessidades. p. 96 (PADILHA) 

Estes princípios descritos aqui, creio que expandem o cuidado com os mais pobres e podem ser totalmente empregados na restauração do Shalom de Deus. Por deslocamento, podemos compreender que precisamos sair das quatro paredes e buscar compreender outros cenários presentes no mundo. Por reconciliação precisamos ter claro em nossa mente que o Evangelho não está restrito somente a área espiritual do ser humano e, por redistribuição, precisamos compreender (e agir) que se somos conhecedores da verdade que liberta devemos ser os porta-vozes, restaurando o Espírito da Criação, compartilhando deste conhecimento com o mundo.

No entanto, devemos levar em consideração que toda a iniciativa de mudanças e melhoras contínuas sejam ecológicas, sociais, culturais e tecnológicas é, sem dúvidas, importante ao ser humano mas, serão apenas no plano terreno, pois o homem sem Deus é apenas o ser criado, com imagem e semelhança ofuscadas pelo pecado, destituído da salvação eterna, carente da graça do seu criador.

Como Igreja de Cristo podemos (e devemos) fazer muito mais do que, repetidamente, promover cultos a Deus. Isso, indiscutivelmente é importante. Mas também é extremamente importante sermos agentes promotores do Shalom de Deus neste mundo, até a volta e restauração completa por Cristo Jesus, pois esta tarefa nos foi dada desde a fundação do mundo!

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BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudos King James – BKJ 1611 – Niterói, RJ : BV Films Editora, 2018.

FELIPE, Sônia T. Galactolatria : mau deleite : implicações éticas, ambientais e nutricionais do consumo de leite bovino – São José, SC : Ed. da autora, 2012.

PADILHA, Carlos René. O que é missão integral? – Viçosa, MG : Ultimato, 2009.

WILLIAMS, Derek. Dicionário Bíblico Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2000.

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