Por: Pe. Hermilo E. Pretto
Extraído de: http://www.vidapastoral.com.br/artigos/antropologia-teologica/antropologia-teologica-da-morte/
Por significar o término da caminhada histórica do homem, a morte representa uma ameaça à esperança humana. E sem esperança o homem não sobrevive. Frente a este impasse, a antropologia nos aponta um caminho: o homem é um ser estruturalmente aberto. Em razão disso, ele transcende a experiência histórica. A teologia, por sua vez, tematizando a originalidade da experiência religiosa, apresenta uma resposta que pode ser crida, mas não demonstrada: a sobrevivência após a morte numa plenitude de comunhão. Em nível de experiência religiosa, outras respostas também costumam ser apresentadas. Cada uma delas deve ser avaliada pela capacidade de responder satisfatoriamente à abertura ilimitada do homem.
1. Uma antropologia teológica da morte
A morte é uma das experiências humanas mais significativas. Há uma fase da vida em que o homem chega a acreditar na possibilidade de estar pessoalmente imune desta experiência. Falta ainda a consciência da inevitabilidade universal da morte. Somente o tempo será capaz de assegurar ao homem a consciência de um horizonte limitado, sem qualquer possibilidade de exceção. O que segue a esta tomada de consciência é uma conspiração de silêncio, ou uma atitude de esquecimento voluntário.
A seriedade com que o homem encara os desafios da vida e a esperança que lhe permite elaborar planos a longo prazo atestam que a perspectiva da morte desaparece em seu horizonte de possibilidades. Embora sabendo-se mortal, o homem age na suposição da imortalidade. Poucos são aqueles que encontram justamente na certeza da morte o impulso maior para um compromisso histórico. Mas para que isso aconteça é preciso uma fé profunda, teológica ou antropológica. Desta fé surge a consciência de um projeto global que justifique os esforços e até mesmo, se a situação assim o exigir, o sacrifício da própria vida, ou sua aceitação confiante.
Esta experiência humana tão significativa é passível de ser abordada sob diferentes prismas. Cada um deles, se for autêntico propiciará a emergência de dados fundamentais de antropologia. É importante salientar que nada do que for autenticamente humano pode ser alternativo. Erro fatal seria o de atribuir com exclusividade a um determinado prisma a capacidade de explicitar de forma autêntica dimensões importantes do homem. É sabido que cada prisma está ligado a um determinado nível de experiência, a uma determinada forma de experienciar a história. A originalidade dos dados está ligada à originalidade da experiência.
Uma experiência, que a história atesta ser universal, é a que se exprime no reconhecimento de uma divindade criadora e de um destino transcendente para o homem. Trata-se de uma forma original de captar o sentido da realidade e que encontra nos ritos celebrativos sua expressão privilegiada. E como estamos diante de uma experiência que se enraíza na profundidade do homem, é normal que daí emerjam dimensões essenciais do próprio homem, possíveis somente neste nível de experiência. Se há uma autêntica experiência religiosa, énormal que haja também uma autêntica antropologia religiosa. Esta antropologia não é alternativa a nenhuma outra e nem se pretende a única possível. Ela apenas reivindica direito à cidadania.
Quando a experiência religiosa é traduzida em categorias racionais, passa-se para o nível teológico. Este, outra coisa não é senão a sistematização de algo que acontece em níveis tais de profundidade que a palavra proferidajamais será capaz de esgotar. É em razão disso que não se pode medir a riqueza e a profundidade de uma experiência por aquilo que dela a razão pode dizer. O máximo de discurso não corresponde ao máximo de realidade. O requinte da verbalização é um progresso expressivo, não, porém, um progresso experiencial. De todo modo, em decorrência desta necessidade que o homem tem de racionalizar as experiências vividas, no sentido sobretudo de captar-lhes a originalidade, é normal que se tenha uma antropologia teológica. Na medida em que for fiel à experiência religiosa, ela tem uma importante palavra a dizer a respeito da globalidade da existência humana na multiplicidade de suas dimensões.
Na abordagem que nos ocupa, a experiência da morte será abordada em perspectiva teológica. Para isso a teologia cristã tem um referencial importante: a Mensagem Bíblica. Ela nos descreve a vida de um povo que, na profundidade de sua história, descobre a presença salvadora de Deus. Embora expressão de uma experiência humana, ela apresenta uma extraordinária originalidade e se faz portadora de elementos tão importantes de antropologia que a melhor definição que se lhe pôde dar foi a de revelação. A definição é correta contanto que não se suponha que ela veicule dados suplementares a respeito do homem que independam da experiência do próprio homem.
2. A experiência humana da precariedade
Ao longo da história, em diferentes áreas, os pensadores se têm debruçado sobre a condição humana, sublime em sua perspectiva, tantas vezes trágica em sua expressão histórica. Ao diagnóstico da realidade, seguiram-se tentativas de apontar saídas: desespero; aceitação consciente do absurdo, evitando acionar mecanismos de fuga, como suicídio ou fé religiosa; crença numa sobrevivência entendida como prêmio ou mérito pela aceitação do sofrimento; descoberta de um caminho de amor e serviço com a perspectiva de uma reconciliação final visualizada como graça e não como mérito. A experiência humana da precariedade pode ser visualizada em diferentes níveis. Na presente abordagem vamo-nos ater a três deles, que nos parecem essenciais:
a) O bloqueio das relações
Não há pessoa humana que não tenha feito, de alguma forma, a experiência de um certo desconforto e de uma certa tensão no emaranhado global de suas relações. Embora a profundidade do homem esteja voltada para a vida, tem-se a impressão de que as forças da morte sejam mais fortes e acabem prevalecendo. Historicamente, a desproporção é tão grande que o próprio homem chega, com frequência, à conclusão de que a morte seja a lei da vida. Por mais que a vocação do homem seja para o serviço (não para a servidão!), porque no desprendimento e na doação está o sentido da vida humana, a experiência histórica parece atestar que as relações de poder acabem sempre prevalecendo.
b) Injustiça e marginalização
A história global da humanidade é testemunho inequívoco do privilégio da minoria e da exclusão da maioria. Sempre houve, é bem verdade, comunidades proféticas caracterizadas por intensa partilha. Elas constituem sinais vivos de uma esperança em vista da sobrevivência da liberdade e da dignidade humana. Mas algo de novo está acontecendo em nossos dias. O homem de hoje, num grau talvez jamais alcançado no passado, dá-se conta de que a pobreza é empobrecimento e marginalização. Em outras palavras, chega-se à percepção de uma ordem social estruturalmente injusta. Tomando a população em sua globalidade, poucos são aqueles que, de fato, têm acesso aos benesses da sociedade e têm seus direitos fundamentais respeitados.
Há um nível de marginalização que está ligado a aspectos externos e que se exprime em relações sociais injustas. Trata-se de uma marginalização operativa e que oferece melhores perspectivas de superação. Bem mais difícil de ser sanada é a marginalização entitativa, quando sua causa é a própria condição natural da pessoa. Tal é a situação, a título de exemplo, dos negros e das mulheres. Esta, sem sombras de dúvida, é a pior forma de marginalização, uma vez que as pessoas marginalizadas estão impossibilitadas de eliminar a razão de sua marginalização. E não apenas elas estão, de fato, impossibilitadas de eliminar esta razão, mas configuraria uma enorme injustiça até mesmo a exigência de um esforço direcionado neste sentido. Aqui já não se trata de uma mudança de relações sociais. Faz-se necessária uma profunda revolução cultural.
c) Os limites da liberdade
Não há homem que já não tenha sonhado com o poder ilimitado da liberdade. Dispor de si mesmo e dos outros, aí realizando uma ilimitada autonomia, é a aspiração de todo homem. Ocorre, no entanto, que a experiência do cotidiano desmente esta aspiração, porque dentro e fora do homem inúmeros são os entraves que restringem consideravelmente seu campo de ação. Em sua rede de relações pessoais há uma integração e mútuo condicionamento entre direitos e deveres. Ademais, ele está limitado no espaço e no tempo e é fruto inconteste de um determinado contexto.
Esta é, fundamentalmente, a condição humana. E mesmo em sua interioridade o homem faz a experiência de uma profunda divisão. Paulo explicitou isto com muita clareza: “Sabemos que a lei é espiritual; mas eu sou carnal, vendido como escravo ao pecado. Realmente, não consigo entender o que faço, pois não pratico o que quero, mas faço o que detesto” (Rm 7,14-15). A tensão entre o bem que se decide e mal que se pratica configura o drama de todo homem. Historicamente, não há como fugir a isso.
3. A morte: Limitação da esperança?
A esperança é o princípio dinamizador da caminhada histórica do homem. A morte da esperança significaria a liquidação da humanidade. Mas para que ela seja sensata, cabe-lhe apontar um objetivo. A absoluta indeterminação da caminhada acaba por se tornar um poderoso fator de alienação. Este objetivo pode ser a criação cultural. Temos aí algo de especificamente humano e de qualitativamente novo. E quando a cultura se transforma em sabedoria, o homem capta a transparência da realidade e vivencia na gratuidade os valores profundos da vida. Ocorre, no entanto, que as formas culturais, por mais elevado que seja o grau atingido, representam apenas momentos de passagem em busca de novas formas. Quando em antropologia se diz que o homem é um ser aberto, quer-se dizer que ele é estruturalmente aberto, não podendo dar-se por satisfeito com nenhuma forma cultural.
O mesmo diga-se de um projeto histórico que se exprima em dimensão de justiça na criação de uma nova sociedade marcada pelo perdão, pela fraternidade e pela partilha. Este projeto pode ser considerado definitivo e capaz de satisfazer de forma exaustiva a abertura radical do homem, somente enquanto se mantiver na condição de projeto. Uma vez viabilizado historicamente, revela-se imediatamente sua precariedade. É, ainda uma vez, a transcendência que interpela o homem e o faz viver num estado crônico de necessidade. Somente sobrevive o homem que é capaz de encontrar incessantemente motivos de esperança que respondam à sua sede ilimitada de mais vida.
É neste pano de fundo antropológico que a morte revela toda a sua dramaticidade. À medida que determina o fim da criatividade humana, ela se constitui numa barreira intransponível para a esperança. Isto se traduz na impossibilidade de atingir um objetivo definitivo. Somente este seria capaz de satisfazer em plenitude a esperança. Não haveria necessidade de buscar novos horizontes, pois realizar-se-ia uma coincidência no homem entre a aspiração e a satisfação. Pode até não haver razões para crer numa sobrevivência após a morte, mas a esperança não seria sensata se o homem não partisse da pressuposição de que isso seja verdade.
É evidente que o estado de carência em que o homem vive e a necessidade de ter diante de si uma meta que lhe permita satisfazer em plenitude a esperança, jamais podem ser utilizados como argumento para provar a sobrevivência após a morte ou até mesmo a existência de Deus. Nossa preocupação é apenas a de explicitar o embasamento antropológico das respostas que as crenças religiosas costumam apresentar. Se Deus e a sobrevivência após a morte forem realidades (isso pode ser crido, mas não demonstrado), então podemos chegar à conclusão de que a morte não determina o fim da esperança e que ela pode até mesmo ser encarada com naturalidade.
4. A morte no contexto da experiência religiosa
Sob diferentes matizes, as crenças religiosas anunciam que o homem passa da morte para uma vida nova. Embora algumas dessas crenças pretendam demonstrar que isto seja verdade, trata-se de uma boa-notícia ou de uma fé como a priori não demonstrável. Esta fé explicita a utopia que motiva a esperança do homem. Nenhum projeto seria pensável se não houvesse uma fé utópica que o sustentasse. Esta fé pode ser teológica ou então simplesmente antropológica. Como aqui nos propomos analisar a questão da morte no contexto da experiência religiosa, será de uma fé teológica que iremos falar.
a) O problema da sobrevivência
Tradicionalmente a sobrevivência após a morte foi encarada como um problema estritamente teológico, enquanto proposição de fé fundamentada na revelação. A utilização da filosofia foi motivada pela necessidade de encontrar um instrumental de análise que permitisse demonstrar racionalmente a proposição de fé. Neste sentido, a sobrevivência se transformou num dogma de fé, cuja demonstração de verdade tem com base justamente a Escritura, enquanto portadora da revelação de Deus.
Pode-se perceber como, por trás disso, existe a concepção da revelação como comunicação de verdades sobrenaturais. Uma das maiores afrontas feitas à palavra de Deus foi a de haver transformado os textos bíblicos num tratado de lógica. A Bíblia não prova absolutamente nada. Nem mesmo a existência de Deus. Mas ela testemunha e anuncia a presença de Deus na história do homem e apresenta uma proposta de vida em plenitude. Este testemunho e este anúncio revestem importância fundamental.
Praticamente não se levou em consideração o fato de que a crença na sobrevivência após a morte responde a um problema antropológico que se apresenta em dois níveis. De um lado, a resistência do homem frente à perspectiva da aniquilação. Ele busca por todos os meios assegurar a própria sobrevivência. Expressões típicas desta resistência são: a nutrição (sobrevivência do indivíduo em dimensão biológica e realidade pessoal); a procriação (sobrevivência do indivíduo através da sociedade perpetuando-se em seus descendentes); a memória histórica (sobrevivência do passado enquanto parte integrante da vida humana); a criação cultural(sobrevivência através das formas da criação artística). De outro, a não aceitação da desigualdade na experiência histórica, sobretudo frente a situações de injustiça.
Por trás disso há a compreensão que vê na escolha entre o bem e o mal uma das questões fundamentais da existência humana. A plena realização do homem está ligada à opção pelo bem contra o mal. E esta questão independe da outra, a saber, a de se poder determinar o que seja bem e o que seja mal. Inverter as posições, ou propor uma equivalência indiferenciada, equivaleria a tornar impossível a existência humana.
b) A resposta cristã ao problema da sobrevivência
Dentro da perspectiva de nossa reflexão, as várias respostas em termos de sobrevivência após a morte não poderão ser avaliadas tomando por base pressupostos dogmáticos ou tradições veneráveis, mas justamente esta capacidade de responder de forma satisfatória ao problema antropológico. O contexto histórico que foi determinante na experiência de Israel, no sentido de explicitar uma fé na sobrevivência após a morte, foi a crise da justiça retributiva de Iahweh. É a não correspondência entre o compromisso moral e as vicissitudes da história concreta manifestando, em alguns casos, uma situação de verdadeira injustiça: prosperidade para os maus e sofrimento para os bons.
Para se compreender a intensidade do drama que estava sendo vivido, é importante recordar que para Israel as bênçãos de Deus se apresentavam em termos bastante materialistas. A saúde, a fecundidade, a prole numerosa e os bens materiais em abundância eram considerados sinais evidentes da condição de justiça vivida pelas pessoas. A ausência desses bens configurava uma condição de pecado, evidenciando o abandono por parte de Deus. Frente a esta inversão de posições, a fé de Israel, que via Iahweh comprometido com a justiça, exigiu uma inversão que transcendesse a experiência histórica.
Na época do Novo Testamento esta crença se havia tornado uma doutrina bastante sólida, dentro de cuja perspectiva atuaram Jesus e os apóstolos. Nos escritos neotestamentários aparece claramente esta doutrina que tem como pano de fundo uma compreensão da História em perspectiva escatológica, voltada para uma consumação final. Em outras palavras, a sobrevivência após a morte se apresenta, na perspectiva cristã, como uma escatologia irreversível. A este respeito, assume significação especial a parábola do rico e do pobre Lázaro (cf. Lc 16,19-31).
O primeiro elemento que nos chama a atenção é o contraste histórico entre o rico e o pobre, explicitado no contraste entre o banquete e a fome. O segundo elemento é a reviravolta de situações: ambos morrem, mas enquanto o pobre vai para o seio de Abraão, o rico vai para o inferno. O terceiro elemento é o diálogo entre o rico e Abraão. O rico faz dois pedidos. O primeiro é o de que Lázaro seja enviado até ele para aliviar seus tormentos. Abraão acentua que a reviravolta é irreversível: “Entre nós e vós existe um grande abismo, de modo que aqueles que quiserem passar daqui para junto de vós, não o podem, nem tampouco atravessarem os de lá até nós” (v. 26). O segundo pedido faz referência ao envio de Lázaro aos irmãos para adverti-los, de tal forma que não venham a cair no mesmo erro e sofrer, por conseguinte, a mesma condenação. Abraão afirma que eles têm Moisés e os Profetas.
Talvez o aspecto mais importante esteja justamente aqui. A sobrevivência está ligada às relações históricas, que se devem expressar em termos de justiça, e não a milagres: “Se não escutam nem a Moisés e nem aos Profetas, mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não se convencerão” (v. 31). Dito em outras palavras, a reviravolta deve começar na História.
O alcance desta doutrina só pode ser compreendido dentro das coordenadas da antropologia semita que via no homem uma unidade fundamental. Não apenas a unidade do indivíduo em sua realidade pessoal, mas sua unidade inseparável do meio vital onde ele vive seu compromisso histórico. Expressões como novo céu e nova terra são bem significativas a este respeito e permitem compreender a perspectiva cósmica que Paulo vê na Redenção (cf. Rm 8). Isso porque o contexto faz parte essencialmente da existência do homem.
c) O alcance antropológico da resposta cristã
As reflexões feitas até aqui nos permitiram tomar consciência da precariedade que marca inevitavelmente a existência humana e dos mecanismos que o homem aciona no sentido de resistir à perspectiva da aniquilação. Ele sonha com a plenitude, mas está preso à parcialidade. Aspira à plena liberdade, mas não consegue libertar-se dos múltiplos condicionamentos. Deseja a imortalidade, mas se defronta com a perspectiva inevitável da morte. A tudo isso dá-se o nome de condição humana. Essa é a única forma possível de existência na história. E como não existem espaços paralelos, a eliminação da ambiguidade determinaria o fim da história.
No esforço incessante por descobrir a raiz desta situação, a antropologia nos dá uma indicação preciosa: o homem não coincide historicamente com o seu projeto. Em outras palavras, existe uma profunda defasagem entre a utopia humana e a realidade histórica do homem. Ele não é historicamente aquilo que é chamado a ser. As concreções da humanidade por mais elevado que seja o nível atingido, ficam sempre aquém do projeto-homem. Esta é uma questão de profundidade, pois o homem não aspira tanto a ter mais, mas a ser mais. As crenças religiosas são formas de responder a este problema. Embora não tenham condições de provar o que propõem, sua palavra é um anúncio que faz apelo à esperança do homem.
É dentro desta perspectiva que deve ser compreendido o anúncio cristão da ressurreição dos mortos. Na Apocalíptica Judaica a ressurreição era o acontecimento que precederia o juízo final e a consumação escatológica. É esta a razão pela qual a manifestação da ressurreição era obviamente associada ao fim da história. Se Jesus de Nazaré realmente ressuscitou dos mortos, nele de forma antecipada a história chegou ao fim. Em outras palavras, o Evento Pascal da Ressurreição permitiu que em Jesus de Nazaré se realizasse a coincidência entre o projeto e a realidade. Neste evento ele se torna o Cristo de Deus, o Homem Novo. Ele é o primogênito dentre os mortos. Nele desaparece a ambiguidade da condição humana e ele se torna em plenitude o homem livre.
Na medida em que a Igreja compreende Jesus Cristo como Salvador da Humanidade, é evidente que a plenitude do humano que nele se realiza deve ter alguma referência à realidade de todo homem. Paulo parece compreender a seriedade da questão quando afirma que fomos salvos em esperança (cf. Rm 8,24). A coincidência entre o projeto e a realidade, que se realizou em Jesus de Nazaré, é anunciada como possibilidade para todo homem. Como é fácil de perceber, na perspectiva cristã a redenção é compreendida como a plenitude do humano. Homem salvo seria aquele que, na experiência da Graça, atinge a plenitude da utopia.
Temos aqui uma maneira de captar a realidade do humano na qual a morte assume uma outra significação. Ao invés de levar o homem ao desespero, ela se constitui num momento de passagem para uma plenitude de vida, onde a própria esperança perde sua razão de ser, pois atingiu seu objetivo: “Ver o que se espera, não é esperar. Acaso alguém espera que vê?” (Rm 8,24b). Assim sendo, cristão e humano não são alternativas. Poderíamos até dizer que o cristão é o profundamente humano. Como não desejar que isso seja realidade?
Aqui justamente o cristão é tentado a utilizar os testemunhos bíblicos como prova ou demonstração, pois teríamos aí uma comunicação do próprio Deus. Temos visto mais acima que a revelação não é uma comunicação de verdades sobrenaturais e que, por conseguinte, ela não veicula dados suplementares a respeito do homem que independam da experiência do próprio homem. O convite que nos é dirigido é para uma atitude de confiança e não de certeza. O Evangelho é uma Boa-Notícia e não um tratado de lógica. O que a antropologia tem a dizer a respeito disso é que existe uma coincidência entre a aspiração fundamental do homem e a resposta cristã. Se esta resposta tem densidade objetiva, é uma outra questão. Será sempre algo que faz apelo à fé à esperança: “Se esperamos o que não vemos, é na perseverança que o aguardamos” (Rm 8,25).