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Servo arbítrio

Por: Claudecir Bianco
Teólogo e Missionário
Janeiro/2020


Ninguém pode vir a mim se o Pai que me enviou não o trouxer. João 6:44

Recente, comprei o livro ‘Nascido Escravo’ de Martinho Lutero e, à medida que avançava com a leitura escolhi escrever estas linhas sobre um dos mais polêmicos temas: O livre-arbítrio. Eu acredito que seja polêmico por ser superficialmente tratado nas comunidades cristãs. Algumas estão plenamente resolvidos quanto a isso, tanto pelo ‘sim’ como pelo ‘não’. Mas o que mais me impressiona é o conjunto de pessoas que nem se quer conhecem parcialmente este conteúdo e, confundem termos ou conceitos, trazendo, muitas vezes, confusões entre aqueles que estão mais próximos.

Dessa forma, as linhas que seguem, estão diretamente relacionadas com a seguinte questão:

Pode um ser humano, voluntariamente e sem qualquer ajuda, voltar-se para Cristo, a fim de ser salvo de seus pecados?

Ou seja, pode o ser humano, pecador usar do ‘livre-arbítrio’ e ‘cooperar’ com o Espírito de Deus para ser salvo?

Primeiramente, vamos observar alguns detalhes importantes de destaque sobre o livro, que estão na tabela abaixo, nas argumentações de Lutero, sobre as afirmações de Erasmo.

 Desidério Erasmo[1] (de Rotterdam), afirmava que SIM, o ser humano ‘colabora’ com o Espírito de Deus para ser salvo Martinho Lutero[2] (da Saxônia), afirmava que NÃO, toda a obra de salvação do ser humano pertence exclusivamente da graça de Deus
Foi monge Agostiniano, por sete anos, estava mais alinhado com a igreja de Roma, Teólogo e Filósofo humanista Foi monge Agostiniano, rompeu com a igreja de Roma, aprofundou-se no estudo das Escrituras
Como humanista, dedicou-se aos estudos do grego e criticava vícios e preguiça. Queria uma teologia “mais simples” Como reformador, teve uma experiência de conversão drástica, era professor, teólogo e pastor. Viveu o evangelho da graça. Sentia o que pregava
Obra: Discussões sobre o livre arbítrio (1524) seu livro ‘agrada’ a igreja de Roma, colocando-o como adversário da fé reformada Obra: Servo arbítrio, a escravidão da vontade (1525), para contra argumentar as afirmações de Erasmo
É considerado um placebo para ferida mortal, uma obra da carne, uma anamnese malfeita Exame aprofundado das Escrituras e base na Graça de Deus através de Cristo
Conceitos mais similares e em harmonia com os decretos do Concílio de Trento[3] (posteriormente) Conceitos em plena harmonia com as confissões de fé Protestante Reformada
Salienta o poder da vontade humana Salienta que a livre vontade, pertence somente a Deus
Fere profundamente, o conceito bíblico de salvação pela Graça Enfatiza a ‘depravação total do homem’ e destaca que a Salvação do ser humano depende exclusivamente de Deus
Diz que precisa fazer algo para receber a salvação Destaca a dependência exclusiva e ação realizada por Deus através de Cristo
Baseia seus argumentos no livro (apócrifo) de Síracides (Eclesiásticos), entre outros canônicos Baseia seus argumentos em livros canônicos
Desenvolve seus argumentos a partir da letra, concentrado na lei Desenvolve seus argumentos ‘olhando’ para a obra de Cristo, concentrado na Graça

 

PROCESSO HISTÓRICO

Importante ter em mente alguns eventos históricos que, ao longo dos anos, foram lapidando conceitos e fortalecendo posições teológicas, as quais devem ser amplamente divulgadas e compreendidas para que não se deixe enganar por vãs filosofias, acompanhe:

EVENTO / DATA
Reforma Protestante – 1517
Obra de Erasmo – 1524
Obra de Lutero – 1525
João Calvino publica a 1ª Edição da ‘Instituição da Religião Cristã’, conhecida como as ‘Institutas’ – 1536
Concílio de Trento (Igreja Católica) considera importante os conceitos expressos por Erasmo, sobre livre-arbítrio, por estar alinhadas com a necessidade da realização de ‘obras’ – 1545 – 1563
Proposição teológica expressa em 5 Artigos da Remonstrância – dos seguidores de Jacó Armínio que discordavam das interpretações de João Calvino na Instituição da Religião Cristã. Entre as quais, está o artigo IV que repudia o conceito de ‘graça irresistível’, alegando que a humanidade tem livre-arbítrio para resistir à graça de Deus – 1610
Sínodo de Dort (Igreja Reformada) que aceita a os conceitos expressos por João Calvino e rejeita a proposição dos Remonstrantes, confirmando assim os cinco pontos do Calvinismo, comumente apresentados pelo acróstico “TULIP“: – 1618 – 1619

1.    Total Depravity (Depravação total);

2.    Unconditional Election (Eleição incondicional);

3.    Limited Atonement (Expiação limitada);

4.    Irresistible Grace (Graça Irresistível);

5.    Perseverance of Saints (Perseverança dos Santos).

Ao mesmo tempo, é interessante pesquisar quais igrejas, na atualidade, estão plenamente alinhadas com a posição teológica Arminiana e Calvinista.

 

NA ATUALIDADE

Em questões atuais, sobre o ‘livre arbítrio’ do homem, podemos afirmar que, assim como um servo não tinha ‘vontade’ própria e, dependia do seu senhor para tudo, assim são aqueles que, pela graça redentora de Deus chegaram à salvação através da sua obra salvífica, por meio de Jesus Cristo.

Agora, suas vontades (arbítrio), estão (ou deveriam) alinhadas com os planos do próprio Deus que é o seu Senhor, pois: ‘foram comprados por alto preço’[4].

No entanto, há aqueles, que mediante ‘brechas’, dão mais guarida aos seus próprios desejos, flertando com o inimigo, gerando frutos de maldades e escolhas fora do propósito de Deus para sua vida. Pois, o que deveria ser transformado na integralidade, em renovação[5] constante, o foi parcialmente, não por força do Espírito de Deus, (pois o Espírito não força a nada) mas, pela relutância da entrega total e obediente do servo comprado.

Não há, no homem, qualquer poder que o capacite para praticar o bem que esteja fora do alinhamento com seu criador, pois a partir do pecado original, tornou-se um ser alienado[6]. Se intenta por fazer algo de bom por si só, em algum momento se corrompe, moral ou espiritualmente, comprovando sua fraqueza e total desprovimento da graça redentora. Nenhum ser humano, somente por sua natureza, conhece de fato a Deus, tem ou adquire capacidade espontaneamente a fim de agradá-lo, pois se assim fosse, a obra redentora perderia seu significado completamente[7].

 

PECADO COMO ALIENAÇÃO

O ser criado à imagem e semelhança, alienou-se e, desde então, busca substituir o amor de Deus por coisas finitas, colocando sua confiança em coisas que não são divinas, escondendo-se[8] a cada dia do Criador, pois encontra-se doente.

Por outro lado, não pode haver cura se a enfermidade não for diagnosticada corretamente, ou seja, aqueles que argumentam o contrário, compreendem que não há qualquer tipo de patologia no ser humano, mas, que sua natureza é sim, saudável, boa e intrinsecamente benéfica para suas ações, pelo simples fato de sentir compaixão por seu semelhante, animais e natureza.

Interessante notar que, compreendendo a salvação vinda com exclusividade do próprio Deus, assemelha-se ao indivíduo enfermo que, ao receber o correto medicamento, passa pelo processo de cura, pois o sentido original de palavra ‘salvação’, também está relacionada à ‘cura’[9].

Neste sentido, o único que promove a cura é Deus, pois Ele sabe exatamente qual é a doença e seu principal e único remédio.

Se ainda não ficou clara a posição de ser favorável ou não ao livre-arbítrio, o que estou argumentando aqui, alinhado com a posição do reformador é pertinente ao livre-arbítrio relacionado à salvação e não à capacidade de escolhas cotidianas do ser humano.

Também, deve-se destacar que a humanidade, ao longo dos séculos, cunhou argumentos individualizados para delimitar os conceitos de bondade ou maldade, que nada se relacionam com salvação espiritual.

Assim, ao argumenta-se que tal pessoa faz o bem (com determinada frequência) este é considerado ‘bom’ aos olhos dos que recebem sua bondade e daqueles que o veem praticar estas boas obras. Semelhante modo são aqueles que praticam ações maléficas.

No entanto, nos destaques das posições anteriores, a referência principal destes argumentos está no processo de salvação[10] e, a vontade/desejo do ser humano, a posteriori, está somente concentrado quando alinhados com os planos de Deus, para que tenha alguma consideração de ‘bondade’, pois foram transformados em novas criaturas[11].

Talvez, queira ler mais sobre o tema de livre-arbítrio no que tange a salvação do ser humano. Para isso indico o artigo de Gordon Haddon Clark : Do Livre-Arbítrio

Assim, concluo com as palavras de Calvino:

‘O homem não tem livre-arbítrio para praticar o bem, a não ser que seja ajudado pela graça de Deus e pela graça espiritual ou especial, dada tão-somente aos eleitos, mediante a regeneração, e que, o homem é constrangido a servir o pecado, mas que o faz numa servidão voluntária, e que a sua vontade é mantida prisioneira pelos laços do pecado!’

Tenham cuidado para que ninguém os escravize a filosofias vãs e enganosas, que se fundamentam nas tradições humanas e nos princípios elementares deste mundo, e não em Cristo[12].

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Baixar em PDF :  

BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudos King James – BKJ 1611 – Niterói, RJ : BV Films Editora, 2018.

LUTERO, Martinho. Nascido escravo. São José dos Campos, SP : Editora Fiel, 2007

CALVINO, Juan. Institución de la Religión Cristiana. Libro Primero – Buenos Aires, Argentina : Nueva Creación , 1968.

Referências Bíblicas para consulta:

Gênesis 1:26; 2:16, 17; 3:6
Eclesiastes 7:29
João 6:44, 65; 15:5; 8:34, 36
Romanos 3:9, 10, 12, 23; 5:6; 6:18, 22; 7:15, 21-23; 8:7
1ª Coríntios 2:14
Gálatas 5:17
Efésios 2:1-5; 4:13
Filipenses 2:13
Colossenses 1:13; 2:13, 23; 3:10
Tito 3:3-5
1ª João 1:8, 10; 3:2
Judas 24

 

[1] Erasmo de Rotterdam

[2] Martinho Lutero

[3] Mais detalhes em Wikipédia – Concílio de Trento

[4] Cf. I Coríntios 6:20

[5] Cf. Romanos 12:1-2

[6] Cf. Paul Tillich

[7] Cf. Romanos 3:10-12 e João 3:6

[8] Cf. Gênesis 3.8

[9] De ‘salvus’ : ‘curado’ – Salvação: palavra de origem grega – ‘soteria’ – transmite a ideia de cura, redenção, remédio, resgate

[10] Que é somente através de Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo de Deus, sem qualquer ação humana

[11] Cf. 2ª Coríntios 5:17

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