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A Liberdade para Seguir a Corrente do Instinto

Por: Claudecir Bianco
Teólogo e Missionário
Fevereiro/2019


Porque vós, irmãos, fostes chamados à liberdade; porém não useis então da liberdade para dar ocasião à carne; sede, antes, servos uns dos outros, pelo amor. Gálatas 5.13

[…] Os limites morais que cercam nossa vida coletiva foram derrubados. Essa é a verdade suprema. O que antes era subordinado, agora, em toda sua natureza bruta e muitas vezes violenta, é cuspido em nome da liberdade ou da auto expressão. O que antes era privado, agora é ostentado publicamente para a galeria de voyeurs. As virtudes da antiga privacidade, como a reserva e a modéstia, são vistas hoje como doenças. Características prejudiciais. O que antes era inconveniente, agora é lugar-comum. O que antes era instinto, agora é verdade. O que antes era sentimento, agora é crença. Antes o melhor era sempre a pessoa de convicção, agora ela raramente é. Antes o autocontrole era uma virtude; agora é a sujeição. Passamos a conhecer uns aos outros de modos que não podíamos antes, diz Rieff, e o que vemos não é agradável. A supressão do ego que antes era a essência da civilidade, agora passou a ser um problema social e psicológico a ser resolvido por meio da libertação do ego. Em suma, enquanto antes eram guiados por uma cultura que aprendera originalmente seus hábitos de fé cristã, agora somos guiados por uma cultura que aprende seus hábitos dos psicólogos – e um grande número dos evangélicos veio a assumir que é disso de fato do que se trata a fé.

A cultura ocidental antes valorizava as realizações mais elevadas da natureza humana – o discurso equilibrado, o bom uso da linguagem, a lei justa e imparcial, a importância da nossa memória coletiva, a tradição, o cerne dos axiomas morais que tinham a aprovação coletiva, as realizações estéticas nas artes que representavam o ápice do espírito humano. Tudo isso agora está acabado. O discurso equilibrado desapareceu em grande parte; em uma nação com a alfabetização em queda livre, a linguagem foi reduzida ao mais baixo denominador comum, a bordões vulgares da cultura jovem; o núcleo de valores se desintegrou; as artes estão degradadas; a lei, politizada; a política, trivializada. No lugar da cultura elevada, a que temos agora é baixa. Os impulsos instintivos incontroláveis substituíram o pensamento; o lado mais tenebroso da natureza humana destrói o mais nobre, deixando uma trilha de pornografia, violência e indiferença. Talvez esse, como dizem os freudianos, seja o triunfo do id sobre o superego; com certeza, é a decadência da antiga ordem e a ascendência da nova ordem que celebra o colapso das barreiras que antes impediam a abrangência mais tenebrosa do espírito humano. Muitos agora, de uma forma estranhamente perversa, sustentam que é precisamente ao dar expressão a essas abrangências mais tenebrosas que encontramos libertação da nossa culpa, ansiedade e alienação.

O que agora está em vigor não é exatamente um sistema de crença alternativo. O que está em vigor não é de modo algum um sistema crença. É mais como um vácuo no vazio silencioso no qual o ego procura significado – e encontra só a si mesmo. Mas isso é colocar o assunto de forma mais passiva do que é garantido. Os vácuos podem ser vazios, mas são muitíssimo destrutivos. A “busca sistemática de toda convicção estabelecida”, escreve Rieff, “representa o atributo anticultural sobre o qual a personalidade moderna é organizada”. Sua essência não são os valores, a doutrina e o comportamento corretos; sua essência é a liberdade de não ter doutrinas nem valores e ser livre para seguir a corrente do instinto que flui do ego seja para onde for que ela o levar, um ponto que os apologistas evangélicos a favor dessa abordagem advogam sem pruridos nem embaraço.

Realizamos, portanto, em nossa cultura o que só os escritores antiutópicos como Aldous Huxley e George Orwell já imaginaram. Estamos substituindo as categorias de bem e mal pelos absolutos esmaecidos que surgem da mídia mundial – o entretenimento e o tédio. Não é por meio da luta e menos ainda da graça que eliminaremos a corrupção da natureza humana da qual os reformadores tinham tanta consciência. Fazemos isso apenas por meio de uma nova definição. O mal é o tédio, e este é remediado com muito mais facilidade que o pecado. Ele não é remediado por Cristo, mas pela conexão a cabo ou via wi-fi.

O “homem psicológico” de Rieff não tem interesse nas preocupações derradeiras, na busca por significado que está fora do ego e não pode ser experimentado; a imaginação doutrinal está atrofiada faz tempo. É no ego que o significado é descoberto. O significado é o ego, a descoberta do ego, a pulsação do ego, o atendimento de suas necessidades. Fora desse pequeno retiro interior, só há o terreno inóspito da modernidade em que a busca por significado é tão complexa, tão exaustiva, tão irritante que só os insensatos tentam fazer isso.

Os primeiros sinais do fim da cultura ocidental ficaram evidentes no século XIX, e pelo menos alguns poucos os perceberam com grande alarme. Mal se prestou atenção à voz destes porque soava muito apocalíptica, muito extremista. Hoje observamos esses mesmos desenvolvimentos, agora com muito mais clareza porque eles se avolumam com muito mais desapego e sem paixão, como um zoólogo que observa os pedações de um pequeno animal que foi desmembrado. A diferença está no fato de que os observadores do século XIX achavam que o espírito humano não sobreviveria incólume e ileso aos desenvolvimentos que pareciam tomar forma; hoje achamos que ele pode sobreviver. Vemos nós mesmos como pequenos barcos obrigados a ir para alto-mar porque uma praga devasta a terra em cujos portos atracamos. Estamos pouco apreensivos em relação à viagem em si mesma; na verdade, estamos felizes com ela. Ela é estimulante. É uma experiência nova. É nossa obrigação “sagrada” empreende-la. Uma a uma, cada uma em nosso próprio barco psicológico, soltos em inocência. Mas é uma inocência inquietante.

O modo norte-americano de viver pode causar inveja ao mundo, suas invenções e equipamentos são procurados e copiados, mas a versão norte-americana de felicidade, ao que se revelou, é bem letal. Os Estados Unidos são um país violento e perturbado. Seus adolescentes têm a maior taxa de suicídio do mundo (em 1991, mais adolescentes meninos morreram por ferimento a tiro que de causas naturais combinadas); os Estados Unidos lideram o mundo no consumo de drogas, legais e ilegais, em vícios de vários tipos, na taxa de divórcio, na incidência de doenças depressivas e na comercialização de uma vasta gama de terapias para contra-atacar esses problemas – tudo isso aponta para uma imensa infelicidade subjacente. É esta que continua a alimentar e a confirmar a necessidade de continuar psicologizando a vida. Os psicólogos que incorporam essa necessidade e servem a ela são muitas vezes os exegetas da antirreligião norte-americana – mas eles também são a última e única esperança de felicidade nos Estados Unidos.

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O fragmento de texto descrito acima é parte do livro de David Wells (2017:196-199). A meu ver são palavras que, apesar de representar a cultura norte-americana, retrata muito bem a nossa.

A ideia é apresentar o autor e sua obra: “Sem lugar para a verdade – O que aconteceu com a teologia evangélica?”, mesmo que de forma fragmentada, com a intenção de provocar diálogos, no sentido construtivo, sobre a forma como nossa sociedade vive o cristianismo.

Por vezes, observa-se uma cristandade sem qualquer interesse por seu próximo, com conceitos teológicos limitadíssimos, outros tantos respondendo às manipulações de líderes sem humildade e distantes dos conceitos bíblicos.

Não há espaço para discussão destes assuntos dentro igreja, claro! O que fazer então? Aceitar tudo, calar-se e tornar-se apenas um frequentador daquele espaço?

Creio que não precisa ser assim. Dessa forma, a intenção é promover este espaço para divulgar essas ideias que poderão, de alguma forma, ajudar em futuras reflexões no sentido de promover mudanças, num sentido de reforma de ideais e conceitos que nos liberte do status quo religioso que mais prende do que liberta!

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BÍBLIA. Português. Bíblia de Estudos de Genebra – São Paulo: Cultura Cristã e Sociedade Bíblica do Brasil, 1999.

WELLS, David F. Sem lugar para a verdade – O que aconteceu com a teologia evangélica? São Paulo, SP: Shedd Publicações, 2017.

RIEFF, Philip. The Triumph of the Therapeutic: Uses of Faith after Freud. New York: Harper & Row, 1968.

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