Menu fechado

Sobre o Estado Laico

Por: Rafael Rosset


Notre-Dame não é “nossa dama”. Notre-Dame não é importante por causa da coroação de Napoleão, ou do livro de Victor Hugo. Notre-Dame não é um acidente natural na paisagem, como o Pão de Açúcar ou o Grand Canyon. Boa parte da intelligentsia parece querer “esquecer” que uma catedral gótica não brota do chão: é fruto consciente da expressão organizada de uma determinada religiosidade e de uma determinada cultura, assim como as cantatas de Bach (que era um luterano compondo para um príncipe católico) ou a Capela Sistina (que mobilizou Rafael, Michelangelo e Botticelli a serviço da Igreja e em homenagem ao Papa Sisto VI).

A raivinha que toda a esquerda sente pelo cristianismo é sintetizada na defesa de um conceito entortado de Estado Laico, a ponto de quererem varrer do mapa qualquer referência cristã da cultura. A questão é que “Estado laico” é, simplesmente, o Estado que não tem religião oficial nem patrocina igrejas. Estado Laico não é expurgar o exercício da religiosidade dos espaços públicos, nem relegar a religião a algo íntimo, privado, que se pratica escondido dos olhares ofendidos dos outros.

Prova de que as esquerdas não fazem a menor ideia do que seja Estado Laico é que Leonardo Sakamoto, quando descobriu que o Cristo Redentor pertencia à Arquidiocese do Rio de Janeiro, escreveu: “pode demolir a estátua que não dou a mínima”. Os próprios franceses estão em guerra permanente contra seu legado católico desde a revolução francesa, quando revolucionários transformaram Notre-Dame num enorme depósito de comida, e quando no fim do século XIX o governo francês mandou retirar cruzes e quaisquer símbolos religiosos de repartições públicas e escolas. Hoje igrejas milenares no interior da França viram danceterias e bares por falta de fiéis e padres.

Só que Estado laico é um conceito que surgiu e só existe em países cristãos (“dai a César o que é de César…”). Na Arábia Saudita, no Iêmen, no Irã, no Afeganistão e na Mauritânia o Corão é o Código Civil e Penal. Em nenhum país de maioria cristã a Bíblia é lei aplicada em tribunais. Na Argélia, no Marrocos, na Líbia, no Egito, no Iraque, no Paquistão, no Sudão, na Indonésia, na Síria e na Malásia, o Islã tem status de religião oficial do Estado, o que significa que o Estado não é laico, e que minorias religiosas podem ser reprimidas. Dentre os países de maioria muçulmana no mundo, gozam de alguma separação entre Igreja e Estado os que estão na Europa ou em suas cercanias (Turquia, Bósnia e Albânia) ou os que faziam parte da URSS (Cazaquistão, Uzbequistão, Azerbaijão e Turcomenistão), mas mesmo nesses proselitismo de qualquer outra religião pode ser considerado um crime (como no Uzbequistão).

É imperativo separar a Igreja (todas elas) do Estado, mas querer laicizar o próprio cristianismo, fingindo que catedrais, cantatas e obras literárias inteiras nasceram por geração espontânea, é o primeiro passo pra jogar na lata do lixo a civilização que o cristianismo moldou, e de cujos benefícios todos nós aqui, sendo ou não cristãos, gozamos. Aquela cruz no plenário do STF, e que está entalhada a fogo na psique da maioria dos brasileiros, é a fiadora de que judeus, muçulmanos, budistas, umbandistas e até ateus puderam acordar hoje com a certeza de que vivem numa sociedade que trata todos os seres humanos como portadores de igual dignidade.

Você pode até ter birra do cristianismo, mas se quiser ter um gostinho de como seria o mundo sem ele, há voos semanais para a Mauritânia e para o Iêmen. Ou se quiser sentir o gostinho de uma sociedade inteiramente secular, tá aí a Coreia do Norte.

Boa sorte.


Imagem de Alex_Berlin por Pixabay

Post relacionado